Estava tudo certo. Ontem, as 16h. Almoçou, passou roupa. Roupa de menino. Calça jeans, camisa e um tênis legal. As entrevistas pra quem é publicitário são mais descontraídas e formais, quase uma unanimidade no meio. Hora do banho. Água quente e o fazer da rala barba. Rosto limpo. Na saída do box, um estojo rosa e recheado esquecido na pia. Uma tentação. Cedeu.
Base nude em um pincel que tocava a pele com suavidade e a transformava. O blush coloria, dava contraste. De leve, sutil. Por trás da armação grossa dos óculos, máscaras para cílios, risco fino do lápis e um pouco de sombra. Pitadas rosas nos lábios, um tom um pouco acima do natural apenas pelo prazer da transformação.
Olhar aproximado no espelho: tudo ok! Tudo ok mesmo? Sair do banheiro, do quarto, da casa. Encarar vida normal (?) lá fora, dividir espaço no ônibus, "tête-à-tête" em uma sala com quem não conhece, a sós. As mãos correm para a água fria. É loucura, hoje não! Uma última olhada, olho no olho. Pensa. Olha de novo, não pro rosto, mas pra dentro. Uma pergunta. O que é normal afinal?
Normal é se conformar vivendo às escondidas. Pelo menos é uma das definições do ser crossdresser que encontramos aos baldes por aí. E a definição de quem é, de forma única, singular? A resposta vem. É decisiva, determinada, exclamativa. Hora do aceite. Fecha a torneira, seca as mãos.
A roupa, calça e camisa, em cima da cama estão prontas para vestir um corpo masculino. Antes, vai ao armário e puxa do fundo uma sacola que vive escondida, com medo de ser descoberta - é a materialização de Thais, é o material de Thais. Lingerie de algodão. Sutiã sem enchimento. Shorts modelador, reduz medidas e levanta o bumbum. Aprendeu o truque com a mãe, de forma indireta. Calça o tênis. Quis mesmo usar o salto 12, ia casar bem no jeans justo que vestia. A ocasião não permitia tanto. Tudo bem, hora de ir.
Sai de casa, sobe no ônibus. "Estão olhando pra mim, será que perceberam? Não! É coisa da minha cabeça." No caminho até o destino, trinta ou quarenta minutos e três ou quatro pensamentos de desistência. "Ali tem um shopping. Desço e removo tudo." O tempo não permite desertar. Joga a favor de quem sempre é segundo plano pra ele. O tempo (a falta dele) a convenceu. "Me sinto bem assim." Antes de descer, saca o espelho. A troca de olhares com o que vê no reflexo tem voz. "Está linda. Continue!"
Anuncia que chegou. Sobe, espera e é recebida por um cordial sorriso feminino. Ao longo da conversa descontraída e em meio a perguntas padrões, percebe que o olhar dela as vezes foge, correndo para pontos do rosto. Estava suave, mas não imperceptível. As curvas dos lábios dela denunciam que gosta do que vê. Foi aprovada! Não que dependesse disso para ser assim.
Na reflexão na volta pra casa, uma lição. Admitir quem é, é libertador. O salário vem em pequenas doses de satisfação e um certo orgulho. Momentos de férias aparecem repentinamente e parecem não ter fim. Elas acabam e tudo volta. E com muito mais força, parece revigorada e pronta para uma longa jornada. Escolher seguir outro caminho parecer ser em vão. "Emprego", do dicionário aplicação, uso, ocupação. Admissão do emprego de ser quem é. Nesse processo seletivo sem recrutadores, se admitiu. Segue feliz sendo assim.